A guerra santa sertaneja (por Felipe Sampaio)
Faria Lima, o agro e a mídia querem mostrar que “o sertanejo une esquerda e direita” e que a igreja católica ainda é o melhor caminho
atualizado
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Os ocupantes do andar superior do PIB nacional aparentam pressa em reverter a adesão dos evangélicos e do fã-clube sertanejo à extrema direita. Afinal, perceberam que o bolsonarismo não fez as entregas ultraliberais alardeadas com o evangelho numa mão e a viola na outra. Apostou-se as fichas (contra a esquerda) no casamento do conservadorismo evangélico com a popularidade do novo sertanejo pop. Contudo, esqueceram que nem Deus conseguiria ajudar os negócios em um regime anarcofascista como aquele que se instalou aqui em 2019. Os negócios só prosperam se houver um mínimo de juízo no comando do governo.
Para dar meia volta na rota frustrada, a solução encontrada pela a Faria Lima, o agro e a mídia tem sido, por um lado, mostrar que “o sertanejo une esquerda e direita” e, por outro, que a igreja católica ainda é o melhor caminho para a salvação eterna. Nessa toada, os mercados correm para repaginar o sertanejo pop como DNA cultural brasileiro, relegando a um plano inferior as expressões tradicionais como o próprio sertanejo raiz, o samba, o forró, o carimbó, a MPB, o axé, o frevo, ou qualquer outra estética que escape às rédeas do projeto político predominante no País desde o descobrimento.
Acontece que o time reinante no nosso ‘Brasil colônia de si próprio’ construiu sua hegemonia econômica, ao longo de 500 anos, apoiado na istração católica centralizada, mais simples de se conviver politicamente. Por isso, não surpreende o desconforto atual com o tsunami neopentecostal fragmentado, que forma seus próprios milionários, elege seus próprios políticos e, cada vez mais, faz suas próprias leis. Enquanto em um bairro existe apenas uma igreja católica, na mesma área há vários templos evangélicos de denominações concorrentes, com costumes, teologias e interesses diferentes.
Essa aproximação entre sertanejo e direita ganhou velocidade no governo Collor. Por sua vez, as correntes evangélicas neopentecostais fizeram esse caminho mais recentemente, avançando sobre as fronteiras até então católicas, alcançando o auge de intimidade com o bolsonarismo. A elite econômica embarcou na ideia, que enfraquece o catolicismo, persegue as religiões afro e escanteia expressões culturais.
A aliança entre a extrema direita, sertanejo e evangélicos desembocou, em muitos casos, no o a recursos públicos e outras facilidades, como se pode constatar nos cachês exorbitantes pagos a shows sertanejos e eventos religiosos em pequenos municípios pobres, que sequer conseguem pagar os salários de professores (sendo objeto de investigações e interdições pelo Ministério Público).
Apesar de os evangélicos ainda serem minoria religiosa no Brasil, seu crescimento vertiginoso se dá exatamente nas camadas socias mais pobres – reduto histórico da esquerda – e em territórios onde, não raro, as vertentes da igreja católica progressista também encontravam melhor acolhimento, como no Nordeste ou nas periferias urbanas. É aí que o pragmatismo neopentecostal, sob o embalo do sertanejo pop, emoldura a narrativa populista e conservadora da extrema direita.
É importante observar que o ciclo de influência tem mão dupla. A extrema direita a a influenciar a própria construção da teologia e dos valores desse novo cristianismo injetando seus pontos de vista na interpretação da bíblia. Até o crime organizado adotou esse roteiro exitoso nas comunidades e penitenciárias sob seu domínio, resultando numa mistura entre religião, crime, música e política. Um cenário caótico até mesmo para o nosso capitalismo bandeirante conseguir controlar.
Felipe Sampaio: Cofundador do Centro Soberania e Clima; dirigiu o Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife; foi diretor do sistema de estatísticas do Ministério da Justiça; atuou em grandes empresas e 3º setor; foi empreendedor em mineração.